4.20.2023

DESEJOS


Quero voltar no tempo 

Quero viver o agora

Revisitar teus olhares furtivos no meio de toda gente

Conhecer teu novo rosto e ouvir as novas palavras sobre os lugares que esteve

Falar sobre os filmes de antes de dormir

Tocar teu corpotatuadaomeu junto como um suspiro que sai de um arrepio

Vem me procurar que agora eu sou do jeito que você queria que eu fosse

Eu vou ao teu encontro e não importa nada do que tem feito

Quero sentir teus olhares, ouvir teus beijos

Lamber os teus abraços agarrados de desejos

Quero gozar na tua boca e apertar tua nuca numa frequência acelerada de gestos 

Unir meu corpauteu como se nunca tivéssemos nos separado

Dizer que eu lamentei ter recusado por pura vingança

Não tocar no assunto do passado, sentir o agora

Mergulhar no fundo dos teus olhos negros e beber tuas lágrimas guardadas pra mim

Assistir nossos filmes repetidos e nunca os mesmos

Escrever novas cartas sobre assuntos que não cessam

Olhar o relógio e temer o correr das horas

Saber que me esperam e não conseguir te largar no meio

Enxergar o ponto do ônibus, do Uber, da moto, da vida

Se despedir num abraço breve-longo e lamentar por não olhar para traz

A saudade era grande demais

E eu nem falei que queria ter te sentido. 


                                                                                     Luciana Braga

5.18.2022

Entrevista para o programa Autores e Ideias

O programa Autores e Ideias, da Rádio FM Assembleia, entrevistou nesta terça-feira (17/5) a escritora e ilustradora Luciana Braga, autora do livro “Escrita Infinita”, que reúne 16 crônicas que tratam do cotidiano e expõe o amor à leitura, aos livros e à escrita.


O Autores e Ideias é um programa dedicado aos livros e à literatura. Produzido e apresentado por Lílian Martins, traz entrevistas com escritores sobre teoria e criação literária.

Exibido na Rádio FM Assembleia 96,7 desde 2008, o Autores e Ideias agora também é podcast. O programa é veiculado na emissora, às terças-feiras, às 20h, e logo após entra no ar no podcast.



EQUIPE DE PRODUÇÃO

  • Produção e apresentação: Lílian Martins
  • Edição de áudio e sonoplastia: Nabuco Queiroz


RÁDIO FM ASSEMBLEIA 96,7

  • Coordenação de programação: Ronaldo César
  • Gerente geral da Rádio FM Assembleia: Rafael Luis Azevedo
  • Coordenador de comunicação social: Daniel Sampaio


Ouça outras produções no podcast da Rádio FM Assembleia



4.11.2022

AZUL NÃO É UMA COR TÃO TRISTE


 


Desde cedo, deixei claro para ele que eu só conseguiria ter bichinhos de pelúcia. Sempre que fechava os olhos, enxergava os dois homens com farda azul entrando casa a dentro sem nenhuma cortesia e os adultos não se dando o trabalho de me explicar que ela não tinha mais salvação. Puxaram-na pela coleira contra a vontade dela e minha. Eu não tinha forças para vencer aquele cabo de guerra. Afinal, a guerra mesmo já havia sido traçada entre a Princesa e o mal que carrega sem piedade todos os cãezinhos para o céu.

Durante a madrugada, às vezes, eu ouvia o as unhas grandes dela arranhando o chão. Eu via os olhos dela me pedindo atenção e sentia o corpo o magro dela em contato com o meu, na época, também tão franzino.

Acostumei-se a dizer que tinha alergia e fingia altos espirros quando me aproximava de algum cão. Tinha medo de me apegar de novo e me deparar com os homens de azul. Agora eu já era adulta, forte e fazia musculação, mas será que eu conseguiria segurá-la sozinha com minhas duas mãos? Será que eu seria capaz de protegê-la de todos os corpos estranhos do mundo? Bem lá no fundo, entendi que o melhor era evitar amar de novo e proteger o coração que não suportava despedidas. Minha mãe entendeu e não permitiu que nenhum cãozinho atravessasse o nosso portão até aquele dia em que ela se justificou dizendo que o tempo não destrói amor verdadeiro, não sepulta o que continua vivo em nós, mas faz a gente mudar de ideia.

O nome dela era Mel. Doce até no nome, foi o que eu disse quando a vi. Mas ela não era nenhum pouco doce, pelo menos não depois dos dois primeiros segundos. Ela gostava de morder tudo a sua volta e o osso predileto era o do meu calcanhar. Eu disse: “Mãe, leva a Mel daqui, eu não quero me apegar!” Não queria sofrer tudo de novo. Meu coração já havia sido dividido, pelo menos, duas vezes. Duvido muito que ele bata tanto quanto o coração de quem nunca perdeu ninguém.

Mas sem perceber, fui me afeiçoando aos olhos doces dela, ao cheiro suave do pelo limpo e à patinha pequena que cabia na minha mão. Ria vendo ela correndo pela casa toda doida, feito flecha que acerta sem aviso o coração da gente. Só que ninguém me avisou que de repente, um raio pode sim cair mais de uma vez na frente dos nossos olhos.

Tudo aconteceu numa manhã silenciosa, em que o celular vibrou e coloquei no ouvido com os olhos ainda fechados. Ouvi a voz chorosa da minha mãe dizendo que a Mel estava toda suja de fezes e vômito e ela não sabia o que tinha acontecido, porque no dia anterior, ela tinha corrido tanto que tinha se cansado e ido dormir cedo.

Levei-a a um veterinário. Paguei uma pequena fortuna e saí de lá com a certeza de que iriam cuidar dela melhor do que eu seria capaz. Não cuidaram! Ou, pelo menos, não conseguiram. O quadro não se reverteu. Um corpo estranho se entrometeu dentro dela e ela foi definhando em menos de 24 horas. Mudei de clínica. Paguei o dobro. Chorei horrores. “ Do que adianta?” Veterinário estuda tanto, né, mas no final, conhecimento não concentra todo o poder do universo.

Decidi pela cremação e a cor do saco de plástico em que a colocaram era azul, igual a farda dos homens, igual os olhos da cachorrinha da minha irmã que tinha nos deixado no ano passado, da mesma cor das minhas unhas que eu ia cravando no braço pra ver se doía na pele mais do que na alma. É que se o sangue escorresse, eu sentiria um pouco do que ela estava sentindo enquanto me olhava com seus olhos fixos. Olhos de quem quer enxergar o mundo pela última vez.

Levei a caixinha com as cinzas e, lembrei-me da Princesa sem velório, enquanto jogava as cinzas que eram levadas pelo vento e se perdiam nas ondas do mar. Oceano é azul, eu sei bem, mas, dessa vez, não senti que era a cor mais triste. Eu senti que a onda me lavava por dentro e por fora. Mergulhei com roupas mesmo e senti o toque do pelo da Mel no meu rosto enquanto a gente dormia, mergulhei de novo e vi o sorriso dela na espuma fria, mergulhei outra vez e a Princesa me advertiu que amar é isso. É um caminhar sem rumo, é um clichê absolutamente necessário, é apegar-se de uma hora pra outra, é um doar-se inteira em mil cuidados. Amar é mergulhar com medo e voltar para a areia com a confirmação de que a homenagem verdadeira não é feita com cinzas, nem enterros, mas é aquela que fazemos sempre que lembramos durante o breve instante em que a onda apressadamente volta para o mar.


                            Luciana Braga

7.17.2021

COMO UMA REPRISE DAQUELE DIA


 A mensagem veio diferente. Não ligaram para o telefone fixo. Ninguém faz mais isso nos dias de hoje. A gente envia uma mensagem pelo WhatsApp e as pessoas respondem enquanto fazem outras coisas no mesmo momento. Ninguém tem mais tempo para ligar para os outros e se demorar ao telefone e eu sinto tanta falta disso.

Pediram que eu consolasse a minha mãe. Sempre me pedem isso e está certo. Ninguém se pergunta se eu precisaria em algum momento de consolo e eu não reclamo. Vou na hora. 

Eu a amparo em meus braços. Torço para ela não cair porque eu mal consigo com o peso do meu próprio corpo. Ela se senta e suas mãos tremem no meio das minhas sempre frias. Não sou eu quem está morta, é ele. E faz tanto tempo que não o vejo. Eu não derramo uma lágrima por ele e isso é tão triste. 

O que me deixa assustada é o fato de saber que terei a chance terrível de seguir o mesmo caminho daquele cemitério que me lembra o do Pôr do sol de Lygia, mas não tem crianças brincando ao longe. Não tem nenhum infante em lugar algum. Enterro não é lugar de criança. Todas ficam em casa enquanto seus pais cumprem esse ritual funesto de enterrar os seus. 

Ouço que minha família ainda é unida e sorrio por dentro me perguntando onde? Não vejo nenhum deles comigo quando sofro de verdade, mas quando alguém liga no meio da noite; temos que ir, não é mesmo? E eu sempre vou.

Quando entramos por aquele portão já aberto que aposto que range ao ser fechado, eu me pergunto se o espírito Dele me vê ao longe e reclama pela minha ausência, mas estou tão focada em segurar a mão trêmula da nossa mãe. E ele também me entende. Ele sempre me entendeu sem dizer palavra. 

Caminhamos em fila sem saber o caminho. E eu observo o caixão sendo carregado pelos filhos abandonados por um pai que partiu sem aviso. Sinto muita pena deles. Ao mesmo tempo, sei que eles tiveram mais sorte do que eu. Ao menos tiveram um pai. Eles repetiram isso em grupo em alto e bom som, com muito orgulho, enquanto eu ensaiava mentalmente um discurso que não verbalizei. 

Caminhamos todos em silêncio e nesse momento ninguém chora, apenas acompanha os homens suados carregando um enorme caixão com detalhes dourados. Não há espaço para os parentes andarem e subimos em cima das tumbas morrendo de medo de alguma desabar e ficarmos expostos ao contato frio e inusitado da morte. Chegamos. 

Minha mãe quer ver de perto. Sobe em uma tumba de mármore. Será pecado? Ela só quer ver despejarem a primeira pá de terra. Como se só assim ela fosse acreditar que seu parceiro de brincadeiras infantis tinha mesmo abandonado ela e sua irmã que chora desconsoladamente ao longe. 

Término do ritual. Todos se abraçam mesmo sem poder abraçar. Dão as mãos mesmo sem poderem tocar devido a pandemia e por trás das máscaras só enxergo a tristeza e a leveza de que foi mesmo um ritual bem bonito. 

Afasto-me segurando a mão da minha mãe e meu irmãozinho fica frustrado por não termos visto sua cruz abandonada ali dentro no meio de tantas outras cruzes absolutamente solitárias.


Luciana Braga

5.17.2021

O MESMO FONE DE OUVIDOS





Ela chegou oito horas em ponto. Estava calçada com um all star de cano alto encardido e cheio de desenhos de cactos, vestia uma calça jeans com rasgos no joelho e uma camiseta indiana. Em qualquer pessoa essa mistura louca poderia confundir os olhos, mas nela ficava simplesmente adorável. Esse visual rebelde contratava com seus cabelos cacheados caindo suavemente sobre os ombros largos. De todo esse conjunto que eu observava rapidamente pela janela do meu quarto enquanto ela subia as escadas, o que mais ressaltava e fazia meu coração acelerar de repente era o seu sorriso torto. Havia algo entre o fechar de olhos e as covinhas que se formavam em seu rosto que certamente deixavam a minha capacidade de raciocínio mais lenta. Tudo isso eu observava enquanto minha amiga caminhava animada em direção ao meu quarto.

Nós nos conhecemos na faculdade no início do ano e quem diria, sete meses é tempo suficiente para alguém se apaixonar. Só havia um problema. Eu era hétero. Ou pelo menos era a informação que circulava entre os parentes próximos e os mais afastados. Já havia tido três namoros considerados promissores, o último inclusive deixou minha mãe muito decepcionada gritando na minha cara que eu era um ser humano incapaz de amar.

Agora estava eu completamente apaixonada por Laura sem poder dizer palavra.

Ela me abraçou como de costume, falou sem parar por dez minutos seguidos, como de costume também, ficou descalça, sentou na minha cama, pegou o fone de ouvido e me chamou para junto dela para ouvir The Smiths. A Laura era divertida, confiante e lésbica. Bem lésbica, ela fazia questão de destacar com entonação de orgulho. Eu achava que nunca sequer tivesse visto um armário para sair, pois já nascera livre, mas ela me contara certa vez enquanto tomávamos vinho na praia que tinha namorado um rapaz por um ano para receber um abraço orgulhoso do pai. Como obviamente o relacionamento não deu certo, o pai se afastou. Assim, ela também decidiu se afastar da ideia de fingir ser quem ela não era. Aos vinte e dois anos, ela dividia um apartamento com dois amigos, mas agora que eles decidiram engatar um relacionamento, ela passava a maior parte do tempo aqui, o que causava pânico na minha mãe que achava que ela trazia maconha na mochila e iria desvirtuar a filhinha dela.

Desvirtuada eu ficava quando encostava a cabeça no ombro dela e dividia o mesmo fone de ouvido. Eu conseguia ouvir tudo, a análise pausada, os suspiros ao desvendar uma nota musical, mas nada se comparava ao perfume que emanava de seus cabelos. Eu me prendia aquele cheiro e se eu me sentia presa é porque de fato eu não conseguia fugir. Fantasiava que iria girar o pescoço devagar e iria me deparar com os olhos castanhos dela de encontro aos meus azuis de medo. Ela umedeceria os lábios, tocaria minha face e suas mãos estariam frias e suadas, mas eu não me incomodaria, presa ao seu sorriso torto, presa ao meu desejo louco, unidas em um único beijo que não precisaria chegar ao fim. Até que ela risse e me dissesse: Por que você está tremendo?

Não era medo, era encontro, era libertação, ter meu mundo inteiro ali ao alcance de minhas mãos e ter que se afastar ofendida porque não está preparada para sair. O armário é grande demais, suas portas são de madeira muito pesadas e eu não sei como destrancá-las. Observo meu desejo de longe. Eu me toco, eu penso nela, eu me provoco, eu viajo em devaneios e paro antes de gozar. Eu não consigo me libertar. O jeito é continuar sentindo o cheiro doce dos cabelos dela enquanto ela pega um pincel verde e desenha mais um cacto naquele sujo all star.

 

Luciana Braga


Conto pertencente à Antologia Pelo Direito de Amar, organizado por Jojo Campos e publicada  pela editora Ao Vento Editorial em 2021.

4.20.2020

CINQUENTA POR CENTO DE CHANCE



Nós nos encontramos pela primeira vez numa sala de professores de uma escola de bairro. Um armário de madeira ocupando toda a parede lateral com o nome dos supostos donos em cada porta denunciava a personalidade de cada indivíduo que deveria se aglomerar naquele espaço nos próximos trinta minutos em torno da grande mesa que parecia engolir a sala com sua toalha de um azul que faz a gente refletir sobre a delicadeza do tom que envolve o céu.
Ele chegou atrasado, penteando rapidamente o cabelo com os dedos, ajeitando o óculos de grau que marcava seu nariz milimetricamente calculado e posto ao centro daquele rosto branco de lábios rosados e rachados na parte inferior. Cumprimentou-me com o olhar e se sentou. Ficou mexendo no celular como quem busca uma mensagem inesperada, mas era fácil perceber que não havia nada, mesmo assim suas mãos não paravam, acompanhando o ritmo descontrolado dos pés que dançavam contra o chão.
Finalmente, a moça entrou na sala em que esperávamos para sermos entrevistados para a vaga de professor de Arte e Educação. Explicou que antes de falar conosco, a coordenadora queria que escrevêssemos um texto sobre o papel das artes no mundo globalizado. Deixou folhas no centro da grande mesa e indicou um porta-canetas repleto de canetas pretas e saiu.
Finalmente ele resolveu me olhar (Ainda não havia feito, embora eu estivesse sentada bem a sua frente) e disse “Método estranho, gente esquisita. Você tá mesmo precisando de emprego?” Eu sorri e disse que ainda estava terminando a faculdade e queria juntar uma grana para viajar e fazer um curso em Paris. Ele pegou a caneta e me disse que eu tinha excelentes fins, mas precisava rever melhor os meios.
Eu comecei a escrever sem parar como se estivesse sendo dominada pelo espírito dos grandes artistas da História da Arte. Citava Van Gogh, quando ele me interrompeu “Eu não acredito que não consigo escrever nada!” “Que tipo de professor eu serei se não consigo dizer pra que serve o que eu ensino? “Vai ver não serve pra nada” (provoquei). “É isso! Você é brilhante! A arte não serve para nada, com finalidade basta a existência das Ciências, da Medicina, da Engenharia. Defenderei ardentemente esse ponto de vista, obrigado!”
Graças a minha facilidade de escrita, pude terminar meu tempo bem antes e assim me sobraram alguns instantes para observar meu excêntrico companheiro de escrita. Enquanto ele escrevia de cabeça baixa, o cabelo liso caía insistentemente sobre o rosto e ele jogava para trás com gestos repetidos e incansáveis. De tempos em tempos, ele levantava o olhar, eu fingia que continuava relendo o meu texto a muito tempo repousando no papel e sorria sem graça ou com medo de ser pegue em flagrante desenhando o rosto daquele estranho mentalmente.
A moça retornou, pegou nossos escritos, chamou-me primeiramente para ir à sala da diretora e ele me desejou sorte. A entrevista seguiu como esperado com perguntas óbvias e relacionadas à didática. Eu só pensava nos cabelos dele caindo insistentemente sobre o rosto. Saí da sala confiante, procurei-o com o olhar, a moça estranhou. Ele havia ido embora.
Saí da escola chateada, pois sequer tinha tido oportunidade de perguntar o seu nome. Ao dobrar a esquina para me dirigir ao ponto do ônibus, enxergo de longe os sapatos inquietos dançando no calçamento. Ao notar minha presença, ele se levantou e perguntou se eu queria ir a um café. Eu perguntei se ele tinha percebido que havia perdido a entrevista e ele disse que assim eu tinha mais chances de chegar à Paris. Sorrimos juntos.
“Como você sabia que eu vinha para o ponto de ônibus? Não tenho cara de quem possui carro?” “ Não é isso, eu simplesmente coloquei uma ideia à prova.” “Como assim, colocou uma ideia à prova?” “Havia cinquenta por cento de chance de eu te ver aqui e cinquenta por cento de chance de não te ver jamais.” “E não poderia ter esperado ao lado do portão?” “Eu não queria que me vissem” “Tudo bem.” Seguimos até a cafeteria e pedimos chocolate quente (Nenhum dos dois tomava café na realidade). Conversamos por duas horas seguidas. Eu nunca havia me sentido tão livre ao lado de alguém que eu mal conhecia, mas ao final, nenhum nome foi dito, nenhum telefone trocado. Ele gostava de colocar tudo à prova. Disse que se estivesse no nosso destino, a gente se veria novamente por acaso e então saberíamos com certeza que estávamos destinados a viver um grande amor. Tentei argumentar que essa ideia parecia um roteiro ruim de um filme que eu havia visto no sábado passado, mas ele possuía uma certeza no olhar que impossibilitava conter o sorriso e aceitar a proposta. Despedimos um do outro com um beijo no rosto.
As horas viraram meses, os meses virariam anos, mas antes de completar um ano do encontro após a entrevista do emprego que havia rendido economias suficientes para uma viagem de poucos meses à Paris, eu retornei a mesma cafeteria e de longe o avistei sentado no canto mais reservado do lugar com um livro aberto, celular ao lado e olhar distante. Eu me sentei bem a sua frente sem dizer nada. A garçonete se aproximou com duas canecas de chocolate quente e colocou sob a mesa sorridente, dizendo “O de sempre” e ele repetiu “O de sempre.”. Eu prontamente me levantei e me desculpei por minha ignorância, pois não sabia que ele estava esperando alguém. Ele disse apenas: “Não se preocupe, ela já chegou.” Eu olhei ao lado procurando alguém e não via mais ninguém além da garçonete. Tornei a olhá-lo e ele me disse: Havia cinquenta por cento de chances dela retornar a esse lugar e finalmente ela retornou.

Luciana Braga


3.23.2020

“ESTAMOS NO MESMO BARCO”




Estamos no mesmo barco? Todos estão realmente trancados no conforto dos seus lares com dispensa e frízer lotados para, pelo menos, quarenta dias? Todos têm dinheiro para encher os carrinhos no supermercado? Todos compraram álcool em gel e máscaras cirúrgicas pelo delivery da farmácia mais famosa? Estamos no mesmo barco e receberemos nosso salário inteiro no final do mês?
Tem gente dizendo que é tempo de reflexão, que os familiares estão com tédio porque já usaram todos os jogos de tabuleiro. Alguns dizem que fechar fronteira é exagero, porque a economia não pode parar. Tem gente tirando foto com máscara só para postar e mostrar pra comunidade virtual que é consciente. Não culpo ninguém. Não cabe a mim apontar culpados, como  fizeram com a China. Como se o Brasil fosse uma super potência independente! Esse barco não vai afundar ou vamos cantar até cair. Os memes não param de nos divertir, enquanto os mendigos estão com fome duplicada porque não há quase ninguém para pedir. As costureiras estão em casa com roupa limpa e costurada, mas com a bolsa vazia e sem a garantia do amanhã. Tem pequenos cantores pedindo ajuda para montar a cesta básica do mês. O circo do meu bairro foi embora e o palhaço não sorriu nenhuma vez.
Estamos no mesmo barco, mas não tem bote para todo mundo. É que alguns tinham dinheiro e subornaram os funcionários do navio. Disseram que mulheres e crianças eram prioridade, assim com as senhoras de idade, mas são os jovens que comandam as multinacionais. Na hora que afunda, todos viram seres irracionais e lutam pela sobrevivência sem pensar no próximo. É que se minhas mãos estiverem bem limpas, eu poderei apontar a realidade do outro como se eu a vivenciasse de fato.
Se nós estamos de verdade no mesmo barco, ele parece o Titanic e o fato é que aqueles que ofereciam os ditos trabalhos essenciais estão no fundo do oceano e debaixo da ignorância de quem pensa que somos todos iguais e vivemos a mesma realidade todos os dias.

Luciana Braga

3.19.2020

ISOLAMENTO





Meu isolamento começou terça passada quando retornei da clínica com pontos dentro da minha boca após uma complexa cirurgia de siso. Durante esses dias sem poder sair de casa, sem poder mastigar, fazer atividade física e dormir deitada, eu refleti muito sobre o que realmente é importante na minha vida. Recebi apoio de alguns amigos mesmo distantes, porque quem me conhece sabe que não aceito visita estando doente. Eu tenho uma personalidade estranha. Apenas, respeitem. Agora que minha cirurgia está quase inteiramente cicatrizada, que eu posso mastigar e retornar aos poucos para minhas atividades, eu não posso sair de casa.
No entanto, não é a limitação de ir e vir que me apavora. É a consciência do privilégio que eu tenho de poder ficar em casa lendo, desenhando, escrevendo, ouvindo música e a segurança de que no início do próximo mês meu salário estará na conta. Enquanto isso, observo o silêncio das ruas e penso na minha mãe e nas minhas irmãs que são costureiras (ninguém compra roupa numa crise dessas), no meu namorado e na minha cunhada que não foram dispensados dos seus trabalhos (porque os supermercados não podem fechar!), nas minhas amigas donas de salão de beleza (Quem vai se arrumar pra ficar em casa?), nas minhas professoras de dança se desdobrando para criar conteúdo online, assim como meu instrutor de yoga e meu orientador de mestrado.
Penso também em quem eu não conheço, mas sei que necessita de gente na rua para vender suas mercadorias, penso nas alunas que trabalham em lojinhas, nos alunos que fazem bicos para ajudar os pais, nas diaristas e babás que se arriscam cuidando dos filhos dos ricos que estão retornando para o Brasil. Eu penso nos mendigos sem gente na rua para pedir ajuda pra comer. Penso nos rapazes que trabalham no ifood, nas prostitutas, nas crianças que estão nascendo assustadas e nas crianças que estão morrendo sem ter consciência do que viveram.
Eu comecei falando de mim, mas agora estou olhando para a minha janela e vendo o quanto esse mundo é grande, assim como o egoísmo de quem estocou álcool em gel e comida como se tivesse em tempos de guerra. Sim, estamos em tempos de guerra. Não contra o corona vírus, esse cruel soldado que ataca com crueldade, adoece os fortes e mata os mais fracos. Estamos em guerra contra o egocentrismo e a vaidade que está destruindo a humanidade pouco a pouco.
Acostumamos a olhar nosso reflexo na câmera do celular e tirar várias selfs para escolher aquela que melhor esconde nossos defeitos. Enquanto isso, há um mundo a nossa volta e nosso celular não capta porque está voltado para nós mesmos. Se queremos sobreviver a essa guerra, temos que retirar o modo self e pensar em todos os outros. Eu preciso do outro para me enxergar como ser humano criado a imagem de Deus. Não foi isso que aprenderam? Se somos a imagem do que é perfeito, porque agimos com tanto individualismo? Até onde eu sei, Jesus era um pacifista, um idealizador. Ele dividiria o álcool em gel, o pão e as palavras. Não estamos vivendo segundo o modelo dEle, estamos vivendo conforme nossa vontade. Enquanto isso, os idosos estão chorando se sentindo ainda mais sozinhos e continuamos olhando para o nosso frio reflexo na tela opaca do celular.


                                                                                                                              Luciana Braga

1.03.2020

O QUE FOI FEITO DE NÓS DOIS?






Eu já não ouço a tua voz
Não vejo as pedras que enfeitam teu pescoço
Não sinto teu abraço a me envolver
Busco em volta e não sei mais o que ouço.

Eu já não leio tuas palavras
Não guardo teus segredos
Não acordo de madrugada ouvindo teus sonhos
Teus medos, loucuras e anseios.

Eu já não sinto o teu perfume
Não toco na tua alva pele
Já não sei em que se resume essa história censurada
Não sei de ti, de mim, de nós, de mais nada.

Luciana Braga

7.01.2019

CIBERREALIDADE





Quando nossos olhos se cruzam, um precipício se abre entre nós. Pergunto qual o teu maior desejo e você foge por medo de cair na minha imensidão. Não é armadilha, mas eu nem sei o que é. Desculpa se eu perdi a fé e já não sonho com a doce e contagiante felicidade. É que eu já senti demais, sofri demais e agora estou sangrando aos poucos. Diga-me que você sabe como é que se faz o antídoto para a dor da existência. Explica-me qual a maior consequência de arriscar tudo o que temos por um desejo. Mostra-me o que eu não vejo. Leva-me para onde eu não sei. Diz palavras que eu desconheço. Segura-me ou eu desfaleço e acordo sem saber quem eu sou.
Quando nossas mãos se tocam, minha pressão vira polo-norte. Eu não tenho a sorte de fingir ser outra persona. Estou fadada a caminhar como aprendi, a me vestir como posso, a beijar quem eu não escolhi. Amor não se escolhe, sabia? Ele vem e nos arrebata. Ele nos fere e nos mata, ou nos deixa com a agonia da insatisfação. Amor é filho da ingratidão. Dizem que ele tudo suporta, mas isso é besteira. Ele bate a porta na nossa cara, ele é dor verdadeira. Ele rouba tudo o que temos de melhor. Não sei porque nos acostumamos a tratá-lo como ovelhinha inocente. Amor é duro, cruel, amor acaba com a gente.
Quando nosso corpo se enlaça, eu sei que não poderei suportar. Eu fujo para não me ligar. Eu me escondo porque só sei ser sozinha. Eu tenho medo de precisar de ti para sentir. Eu sou eu e eu sonho que me basto. A realidade difere do que penso, mas eu escolho a fantasia. Lá eu me enlaço com a rebeldia. Lá eu sou ele, ela, eu só nós. Lá não há limites para gritar. Eu posso me virar sem medo de escorregar. É só em sonho que eu posso te amar. No mundo real não há espaço para o improvável. Não há espaço para o politicamente incorreto, para o indigesto, para o incesto, para o complexo universo do que nem sei explicar. Só sei que na ciberrealidade existe uma diminuição do que me julga e eu posso ser quem sou sem julgamentos, sem pensamentos, sem complementos. Nada lá me falta. Tudo é mais bonito por isso quero fechar os olhos e tocar o infinito. Apenas deixe-me ir, deixe-me ou venha comigo.

Luciana Braga